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“Eu sentia que em algum momento, a Bruna precisava nascer”.

Entrevistamos Bruna Rocha, uma das fundadoras da Associação de Travestis, Transgêneros e Transexuais do município de Juiz de Fora (ASTRA).

“Eu sentia que em algum momento, a Bruna precisava nascer”.

Como você conseguiu acessar a mulher que habitava em você, além do espelho?

Foi esta a pergunta que norteou meu encontro com Bruna Rocha, uma das fundadoras da Associação de Travestis, Transgêneros e Transexuais do município de Juiz de Fora (ASTRA).

Não foi apenas um, mas muitos os espelhos que refletiram Bruna para si mesma, permitindo que ela enxergasse e expressasse a mulher que já habitava dentro dela.

Conheça sua história e o seu complexo processo de descoberta e autoconhecimento.

O primeiro espelho: o secreto

“Cresci em um corpo masculino, mas você não me via dentro daquele corpo. Comecei a notar as diferenças biológicas, principalmente na juventude em que elas se destacam mais, e vi que eu estava em um corpo que não é muito aquilo que eu queria não… (risos).  

Você pensa: ‘ah, não é isso que eu quero, não é isso que eu penso, não é dessa forma que eu quero viver’. 

Só que você falar de gênero e sexualidade há 30 anos atrás era muito difícil. 

Não tinha uma abertura, não podia falar com ninguém, apesar de já viver minhas experiências sexuais (errôneas, na grande maioria das vezes). 

Sofri inúmeras violências, mas me calava diante da situação, porque não tinha com quem falar.

Minha mãe me levava em psicólogos, tentando encontrar algum problema. 

Os psicólogos falavam: ‘não adianta ficar trazendo aqui pra isso não, porque não tem o que fazer.’ 

O segundo espelho: a amiga

Eu tive uma amiga trans (eu sou travesti) que foi muito importante na minha vida. Ela foi o meu gatilho para perceber que existe outra possibilidade de viver.

Desde novinha, eu via ela assumida. Ela estava fazendo um movimento político dentro da escola, e a gente nem tinha noção do que era política naquela época. 

Ela botava cadeira no meio do pátio e falava: ‘olha, eu gosto que me chamem de Andressa. Não me chamem de outro nome que não vou aceitar, não vou responder’.

Na grande maioria das vezes as pessoas jogavam pedra nela, batiam… E era uma reivindicação de pauta! Na época, coitada, sofreu muito e acabou sendo assassinada.

O terceiro espelho: o psicólogo

Conversando com os psicólogos, um deles falou: ‘olha, este é um processo seu. Um processo demorado, que vai ser doloroso, mas que você vai precisar passar por ele em algum momento.’

Em algum momento das sessões de terapia, eu entendi que este momento era fazer 18 anos. Eu ficava contando os dias, pensando: ‘Vou fazer 18 anos e vou poder ser eu’. 

Mal sabia que fiz 18 anos e não mudou ‘nada’ (risos). Mas eu furei uma orelha. Na outra semana,fiz outro furo. Aí mais uns 15 dias, não aguentei, e fiz a sobrancelha. 

Neste processo, a Bruna acabou nascendo, em uma confusão de ideias, de conflitos internos. 

O quarto espelho: a família 

Eu  tenho o apoio da minha família para tudo, e isso é incondicional. 

Claro, no momento do nascimento da Bruna teve um choque, um conflito, mas mesmo com todo o choque, eu tive o apoio que eu precisava para me manter, pra existir. Eu continuei tendo casa, eu continuei tendo acesso a educação, eu continuei tendo estrutura familiar. 

Meu pai faleceu muito cedo, nós éramos crianças. Minha mãe sempre foi a melhor mãe do mundo. Dentro das possibilidades que a gente tinha, ela proporcionou tudo que podia. Na questão familiar,eu sou uma pessoa muito realizada.

Assim que nasci como Bruna, fui logo para São Paulo, fui viver, e a vida foi outra. 

O mundo me ofereceu inúmeras possibilidades, mas sempre tive o porto seguro de poder voltar na hora que eu precisei. 

Eu não esqueço do dia que eu saí de casa, minha mãe estava sentada no sofá, e eu com a minha malinha arrumada. Ela com os olhos cheios de lágrimas, falou assim: ‘ó, alguém está te mandando embora de casa?’

 Eu falei, ‘não’. 

Aí ela: “Pois é, lembra que casa de mãe só é nossa casa até a gente sair, depois que você sair dessa casa levando essa mala, você lembra que não é mais sua casa, é casa da sua mãe’. 

E aquilo me marcou, porque eu não sabia o que o mundo iria ofertar daquele dia em diante, mas, se eu não vivesse essa experiência, não iria estar feliz por completo, por saber que eu não tentei pelo menos. 

Esse momento acho que foi um momento muito difícil da minha vida, que eu saí de casa e fui viver.

Foi aí que eu conheci a noite, a rua e comecei a fazer programa. 

O quinto espelho: o processo

O processo de nascimento da Bruna foi longo, durou cerca de 7 anos. Esse nascimento foi uma libertação. 

Mas, funciona assim: você acabou de nascer,  então você não tem controle, não sabe seu limite, está aprendendo a andar, aprendendo tudo. 

Então, eu dei um monte de cabeçada e fiz várias coisas que hoje, por exemplo, talvez eu não faria, ou se fizesse, faria de outra forma. 

Mas, enfim, foi um período muito bom da minha vida em que tudo era novo. 

O primeiro hormônio, o silicone… foi um momento de descoberta em que eu nasci para uma nova vida.

Viajei o mundo inteiro, fiz mil coisas. Mas eu sempre soube que a qualquer momento eu poderia voltar para casa, e eu acho que esta segurança foi o que causou o maior impacto nas atitudes que eu tive. 

Ao longo dessa trajetória, eu perdi a maioria das pessoas que conheci, já não estão mais aqui.

E como essa era a minha realidade, eu não fazia planos igual a todo mundo. 

Pensava: ‘o máximo que eu vou viver até os 30 anos, então não vou fazer planos.’

Até aí eu tinha 18 para 19. Fui vivendo. Até que eu fiz 30 anos. 

Olhei para a vida e pensei: ‘bom, eu não peguei AIDS, eu não fui assassinada. O que que eu vou fazer?’

E aí eu comecei a pensar, ver outras possibilidades de futuro, e pensei: ‘vou estudar’. 

E aí, mais uma vez, eu renasci

O sexto espelho: a Educação

Foi um momento de renascimento fazer 30 anos.

Até então, eu não esperava outra coisa, não tinha perspectiva, planejamento de vida, nada:  eu achava que ia morrer até os 30.  

Voltei para Juiz de Fora, e com o dinheiro que eu tinha, comprei uma casa e decidi estudar.

Um pessoal da UFMG, veio para Juiz de Fora para fazer um documentário. Quando conheci essas pessoas, assim que voltei da Europa, pensei: ‘ué, quem é esse povo todo estranho, do jeito que a gente é, meio chique, mas meio errado também? Aquele errado-certo, sabe?’

E eu nunca esqueço a tarde que conheci uma preta com cabelo black grandão, e descobri que ela era  cineasta! Eu pensei: ‘gente preto, pode ser cineasta? Meu Deus, que delícia, eu posso ser assim, como eu sou, e ter profissão também?’

Então isso foi muito importante porque eu achava que estava limitada à rua. A minha vivência era toda pensada na rua.

Lembro de falarem neste documentário que eu era uma pessoa super articulada. E eu nem sabia o que era a palavra articulada. Mas aquela semente foi plantada.

Com esse trabalho, pensei: existem pessoas que se preocupam com a gente e com o que estamos vivendo. 

E aí que eu comecei a olhar não com olho da rua, mas com um olhar destes grupos. E vi que era muita gente trabalhando! E olha que há 20 anos atrás, o trabalho estava começando, engatinhando. 

Então eu falo que eu tive o nascimento aos 18, e o renascimento aos 30, pois foi aí que eu vi as possibilidades.

Quando eu parei de estudar, foi por não ver possibilidade de acesso. Eu pensava: eu vou ficar estudando pra que? Sozinha, sou trans mesmo, vou estudar e não vou conseguir emprego. 

(E realmente não existia!  Eu não tinha referência de uma trans que trabalhasse, eu tinha referências apenas de trans que faziam programa! Era o espelho que eu tinha).

Só que na época, descobri um programa chamado “Educação sem homofobia”, e apareceu o processo seletivo para secretariado no Instituto Federal. Era um curso Proeja, então era acompanhado do curso técnico.

Eu queria estudar, mas não podia ser alguma coisa muito difícil porque apesar de ter concluído o ensino médio, estava há 15 anos só na rua.

E aí eu vi que a prova era uma carta. E aí eu fiquei numa felicidade, pensei: ‘pelo menos, escrever, eu sei.

E esse curso mudou minha vida.

Nessa época, eu saía do Instituto Federal e vinha para a rua fazer programa até as 5 da manhã. 

Um dia, um professor meu passou e me viu. Ele me perguntou por que eu estava lá, e eu falei: ‘porque eu preciso pagar as contas, eu preciso viver’. E contei tudo pra ele. 

Ele perguntou por quê eu não pedi bolsa, e me explicou que tinha auxílio para as pessoas estudarem. E eu nem sabia que isso existia. 

Consegui as bolsas, e todos os auxílios somavam quase um salário mínimo na época. Foi aí que eu consegui ficar só por conta de estudar.

Depois dessa experiência até pensei em seguir carreira acadêmica. Mas, uma vez, em uma especialização, eu e um outro menino trans fomos reprovados em uma matéria sobre travestilidade por um professor gay. Essa situação, para mim, foi o estopim. Hoje não penso mais em seguir carreira acadêmica, apesar de ter sido algo muito importante para minha vida. 


O meu renascimento surge pela educação, e por isso, minhas pautas estão sempre voltadas para a educação. 

O sétimo espelho: a sociedade

Eu não vou falar que não sou violentada porque eu tenho acesso a educação: eu apenas não sou violentada o tempo todo, é diferente. 

Por exemplo, durante o dia, até como eu me visto pode ser um problema. Nossa, pra mim era dificílimo! Hoje eu já coloco um vestido um pouco mais justo sem me preocupar com o julgamento dos outros, mas, durante muito tempo na minha vida eu não usava, ficava pensando: ‘todo mundo sabe que eu preciso fazer programa’. 

A grande maioria das travestis usam óculos de sol, passam pelo canto com a cabeça baixa e um coque no cabelo, roupas largas, para chamar o mínimo de atenção possível durante o dia e não ser violentada. 

No artigo que escrevi “O dia que eu tirei meu óculos de sol”, eu falei do meu dia feliz em que eu coloquei meu vestido e saí como eu quero. 

Eu tenho acesso ao nível superior, tenho pós graduação, e tem situações em que sou uma pessoa silenciada. Tenho um salário que garante a minha estrutura de vida, sim, mas sei o quanto sou julgada nestes ambientes, principalmente de pessoas de alto padrão. 

Na prática, uma pessoa que já foi violentada o tempo todo é programada para ser silenciada. 

O oitavo espelho: A Rua 

Este julgamento é um dos motivos pelos quais eu me sinto bem na rua. 

Hoje, as voltas que eu dou no centro da cidade nos meus finais de semana, é o meu momento de extravasar, ser eu na minha plenitude. 

É um lugar que estou com os meus amigos, fazendo o que eu quero.

Sento na beira da esquina com as meninas, e não tem problema nenhum. Eu não preciso mais do dinheiro, mas é algo que alimenta a minha sensação de liberdade.

A rua pode ser um lugar de liberdade quando é uma escolha, do meu direito de olhar e falar assim: ‘isso eu quero, isso não quero. Eu não quero você, eu quero você.’ 

Eu discordo bastante do discurso de que se você está na rua tem que fazer programa com todo mundo. Não, não é. 

Pra mim é um momento de escolha, porque eu sou escolhida o tempo todo! Eu sou escolhida da hora que eu acordo até a hora que eu vou dormir. A hora que eu estou ali na rua, não: eu faço as minhas escolhas, eu tomo as minhas decisões. 

Eu brinco com as meninas: ‘Quem pode me achar um boy gato, gostoso, com algum dinheiro para aumentar a minha renda?’ 

O que é algo que não tem problema nenhum, também eu sou capitalista, adoro dinheiro. Já faço porque gosto, e ainda saio bebendo a minha cerveja, bancando meu jantar, a vida que eu vou ter dentro do padrão que eu quero ter. 

Claro que ao longo do processo de análise você vai trabalhar nessas questões. Você vai deixando de se culpar por estar naquele lugar, naquela condição. 

Porque a rua também é um lugar que você vai ser julgada e que provavelmente vai ser violentada, mas você sabe que todo mundo que está ali está no mesmo pé de igualdade, e é o seu lugar de escolha. Mas vale lembrar que a gente vive dentro de um sistema, e você paga um preço alto pelas suas escolhas.

E eu ainda posso escolher. Tenho irmãs que não. Então há a necessidade de lutar pelos direitos delas também.

O nono espelho: o Afeto  

Conheci um homem que desde a primeira vez que nos encontramos sempre deixou claro que estava comigo porque queria estar. Ele não queria nada,  apenas a minha companhia.

Eu sentia que ele me admirava, me via pelo meu lugar de trabalho, de profissional, de estudo, e fazia questão de estar comigo em todo lugar e me apresentar para todo mundo.

Com ele, eu percebi que eu não sou a travesti, preta, militante. Eu sou a Bruna. 

Esta relação simplesmente me resgatou de um mundo de relacionamentos extremamente abusivos, em que, quando eu não era violentada, eu era quem estava violentando.

Quando eu percebi que estava apaixonada, uma amiga me perguntou: Bruna, por que você tem medo de aceitar que você pode ser amada? E me indicou uma analista. 

E foi aí que comecei a me autoconhecer profundamente. 

Comecei a perceber que a maioria das pessoas não estavam ao meu lado por afeto, a maioria era comprado. Eu vi que eu tinha que estar cuidando de todo mundo o tempo todo, e nessa dinâmica, você acaba cuidando mais do outro do que de você.

Foi outra libertação.

Eu e este namorado terminamos por outros motivos, mas o que ele deixou foi muito maior do que o que ele talvez tenha tirado, porque ele me deu a oportunidade de me tornar uma pessoa melhor e me autoconhecer. 

O décimo Espelho: a ASTRA

No auge da pandemia, recebo uma mensagem de uma amiga: “Bruna, vocês podem fazer alguma coisa para a gente que está na rua?”

Neste momento de dor muito grande, eu já estava empregada e trabalhava em home office, com um salário que garantia toda a minha estabilidade. Então pensar nas minhas amigas nessa situação me doeu.

Fui atrás do Centro de Referência, expus a situação e pedi ajuda. Uma semana depois, estávamos com 30 cestas básicas para doar. 

Fizemos vaquinha virtual, foi um movimento muito grande, e conseguimos sustentar a população travesti, transexual, profissional do sexo, durante um ano, o primeiro da pandemia.

Porém, a pandemia se estendeu, e o Centro de Referência não conseguiu suprir a demanda. 

Foi aí que criamos a ASTRA – Associação de Travestis, Trangêneros e Transexuais do município de Juiz de Fora. Éramos eu, Dandara Felícia, Brunne Coelho e Mc Xuxu.

Neste processo, conseguimos um suporte financeiro que sustentou essas meninas nos outros 2 anos da pandemia. 

A gente garantia a cesta básica e, em contrapartida, elas faziam algum curso profissionalizante. 

Mas sempre fiz questão de reforçar que elas não tinham que sair da rua, a gente não ia trabalhar com uma pauta em troca de outra.  O direito de ficar na rua e ser profissional do sexo é um direito que eu defendo, inclusive!

Mas, falo para elas: ‘Aqui, pode ser o seu lugar de gozo, mas ele não precisa ser o único lugar que você tenha para tirar sua subsistência.’ 

Algumas das meninas fizeram cursos profissionalizantes, hoje estão trabalhando, mas a grande maioria ainda não. 

Por ora, as atividades da ASTRA hoje estão focadas em questões mais pontuais, como a situação de meninas mais velhas, ou debilitadas por saúde. 

Essas continuamos mantendo essa política assistencialista.

Mas nosso foco é o da capacitação profissional, da autonomia desses corpos também, para que elas tenham outros caminhos, outras possibilidades, como eu tive.

Atualmente, Bruna segue dando continuidade aos seus projetos pessoais, na cidade de São Paulo, trabalhando como técnica de enfermagem no Consultório de Rua, com o acompanhamento de mulheres trans e travestis sexagenárias, dando continuidade ao trabalho iniciado em Juiz de Fora.

Fotografia: Flora Elias
Direção criativa: Anna Leão
Agradecimentos: Atena Bookstore


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