Quando eu era criança, lembro de ouvir histórias sobre mulheres-feiticeiras, mulheres-demônios… Mulheres que de alguma forma representavam o símbolo de comportamentos negativos e cujos arquétipos deviam não só serem evitados, mas também temidos.
A história de uma, em particular, me fascinava: Lilitg, a libertina e transgressora.
Contava-se que Lilith foi a primeira esposa de Adão – uma figura conhecida na Bíblia Hebraica.
Criada do mesmo elemento que o homem, a terra, Lilith recusou incessantemente ser inferiorizada e submetida ao poder masculino que reinava no Éden.
“Se nós dois viemos da mesma terra, por que é somente Adão quem dá nome às coisas?”, ela questionava.
“Por que é somente Adão que tem a liberdade de sentir prazer, em um lugar que deveria ser de gozo para todas as criaturas?” – Ela perguntava a Deus.
Como podia aquele ser o paraíso, se Lilith se sentia tão presa e sua voz não era escutada?
Foi então que decidiu fugir.
Sua decisão teve consequências: se tornou solitária, sentenciada a todos os dias dar à luz uma centena de filhos, que já nasciam mortos.
Naquele tempo, a história de Lilith era usada como um exemplo de como as mulheres não deveriam se comportar, e a punição de Lilith era repetidamente afirmada como a punição de todas nós.
Ousar questionar era um problema.
Ousar questionar em nome de uma liberdade (sexual, política ou qual fosse) era uma problema maior ainda.
O risco que assumíamos podia variar, mas em geral acabava sempre assim: na solidão, no sentimento de perda e no luto (as vezes no luto por perdermos parte de nós mesmas).
Cresci ouvindo frases como: “Fique quieta, senão você vai ver as consequências!”, “não fale demais, senão você vai acabar vulnerável!”, “se comporte, senão ninguém vai te levar a sério!”, “o mundo é assim mesmo, sempre foi…, você precisa aprender isso, senão vai ficar sozinha”.
Hoje, não mais criança, continuo fascinada pela história de Lilith.
Isso porque ela é o símbolo de uma mulher que não ficou quieta, não se comportou, não se conformou diante do sentimento de injustiça, mesmo diante das consequências.
Lilith é, no fundo, o símbolo daquelas que ousaram (e ousam) abrir mão do paraíso em nome da denúncia da desigualdade e da violência contra nossos corpos;
Somos nós: mulheres mães, irmãs, filhas, negras, indígenas, brancas, periféricas, trabalhadoras, lésbicas, bissexuais, transsexuais, sagradas.
Todas nós, Liliths, que, assumindo a liberdade ao abrir mão do paraíso (e do conforto), nos tornamos libertinas e transgressoras.
Mulheres forte. E mulheres fortes incomodam. Quantas vezes você temeu o símbolo de uma mulher forte?
Texto: Giovanna Sarto
Fotografia: Flora Elias
Direção Criativa: Anna Leão
Apoio: Fórum da Cultura