Nádia Rebouças foi uma mulher histórica.
Ela não apenas ocupou espaços de poder em um contexto em que as mulheres não tinham nenhum espaço, como os utilizou para fazer o bem.
Foi uma das primeiras mulheres a ocupar grandes cadeiras da publicidade com relevância internacional, utilizando a comunicação à serviço da transformação social.
Transitando entre espaços, sem referências e com profundo respeito à própria verdade, é um exemplo para todos os profissionais da comunicação que querem tornar este mundo melhor.
Infelizmente, Nádia se foi no dia 21 de maio de 2025, deixando um legado de inspiração e admiração para toda a cena criativa, e para aqueles que lutam por uma sociedade mais justa.
Meses antes da sua partida, Nádia concedeu uma entrevista à Espelho Nosso, em conversa profunda e crua, que pode vir a ser sua última entrevista.
Foram horas de conversa que, mesmo com edições para amarrar a narrativa, fizemos questão de manter em primeira pessoa, para que cada pessoa que ler, possa se sentir em contato com ela mais uma vez.

Nádia Rebouças, por Nádia Rebouças
Nasci em São Paulo, em 1949, numa classe social baixa, onde não existia a possibilidade de sonho.
A história das mulheres da minha família era daquelas que escutavam e aprendiam pelas frestas das portas, porque as mulheres eram proibidas de aprender a ler.
A vida era casar. No máximo, você ia ser professora primária – o que era motivo de grande realização!
Tive dois exemplos que me marcaram: uma tia que foi professora, e era muito realizada; e a outra que era solteira e andava de salto alto, pintada, com uma vaidade que eu não via nas outras mulheres da família.
Mas, nunca deu tempo de ter sonhos, de pensar se eu tinha alguma vocação.
Na escola, havia pistas do caminho que eu seguiria.
Por exemplo, se tinha que fazer um discurso, a professora dizia: ‘você faz, Nádia, você escreve bem‘.
Tinha esses sinais, mas eu não sabia como que isso acontecia nem onde vinha – eu não tinha referências.
Mas, uma coisa eu sei: eu já era uma empreendedora.
Morava numa vila em São Paulo e era a líder da garotada.
Levava as cadeiras das casas, organizava, fazia uma arena (que nunca tinha visto antes), ensaiávamos a peça, apresentávamos — e ainda cobrávamos por isso!
E era uma coisa assim: onde eu punha os meus pés, eu emitia luz.
Só que eu não percebia isso.
Fui perceber anos mais tarde, quando o terapeuta disse:
‘põe uma coisa na sua cabeça, Nádia: você nunca vai entrar em um lugar em que você não vai ser notada. Esqueça que você quer desaparecer, não existe essa opção para você.’
E isso me dava uma angústia enorme! Vou te explicar o motivo.

Entendendo sua identidade – e o próprio brilho.
Nasci nove meses depois que a minha irmã morreu, e me batizaram com o nome dela.
A minha família tinha que reconstituir em cima de mim a outra que se foi.
Eu ia ao cemitério e lá estava escrito: ‘Nádia Maria Rebouças de Carvalho’, que era eu!
Então, era uma coisa muito confusa.
Minha mãe me colocou na escola usando o registro desta minha irmã, que era dois anos mais velha do que eu, porque eu queria muito estudar e não tinha dinheiro (o jardim de infância era pago naquela época).
Então, essa coisa de me achar líder era algo que me dava angústia, porque eu imaginava que eu estava ocupando o lugar da minha irmã de alguma maneira, que não era eu.
Só voltei a ter o meu registro quando eu tinha 11 anos.
Foi neste momento que eu virei eu.
E o meu ‘eu’ foi contra a família.
Até então, eu era a filha que tinha que ser boazinha, para compensar a que se foi. Vinha culpa, um monte de maluquices.
Mas quando eu virei eu, pronto, acabou: comecei a ser líder com tranquilidade.
Na escola, eu criava movimentos contra as freiras porque elas queriam que a gente fosse de saia, e eu queria de calça comprida.
Queria que nós déssemos aula de religião, e eu falava: ‘quem é religiosa é a senhora, eu sou educadora, o que é outra coisa.’
Mas elas me adoravam porque os pais me adoravam: eu era uma excelente conselheira de pais com 18 anos, 19 anos. Não sei de onde vinham essas coisas.
Eu tinha uma preocupação enorme com as pessoas que passavam fome.
Via as notícias e aquilo me desesperava!
Então, eu comecei a frequentar a Igreja, porque era o lugar que manifestava o desejo de salvar o mundo de alguma maneira.
Até que um dia, um bêbado entrou dentro da Igreja e o padre parou a missa dizendo: ‘tira essa ovelha desgarrada daqui’.
Na mesma hora, saí com o homem e nunca mais voltei para a religião.
Depois, virei comunista – era a coisa mais interessante que eu vi passar do meu lado com uma preocupação com as pessoas.
E aí a cultura me pegou.
Fui fazer teatro, fiz ‘Morte e Vida Severina‘ (não sei se você conhece, porque hoje em dia quando eu falo uma coisa que me parece tão óbvia, penso: ‘estou falando em vinil, o que essa pessoa sabe de vinil?’).
Aos 15 anos de idade, Vladimir Herzog era a minha referência.
Era o jornalista que saía de São Paulo, ia ao Peru acompanhar a revolução e, ao voltar, reunia os jornalistas para conversarem sobre o que estava acontecendo.
Eu era uma pirralha ali no meio, só escutando, e descobrindo que existia um mundo fora da minha casa que era um mundo que tinha livro, que tinha disco, que tinha tudo.
Em determinado momento, abri uma escola de arte para crianças.
A escola era um lugar pra eu ser livre e educar as crianças como eu achava deveria educar.
Isso no meio da ditadura, em um colégio dominicano, escondendo o Frei Beto.
A ditadura era insuportável, e a juventude daquela época tinha uma capacidade de fazer incalculável, éramos absolutamente criativos.
Em todas as áreas, é uma geração de uma capacidade criativa infernal essa minha!
E era tão engraçado que parecia que a gente não tinha medo.
Hoje olhando as coisas, eu penso: ‘como é que não tinha medo? Tinha que ter muito medo dessa loucura!’.
Mas, parecia que era porque era a nossa vez de viver, e eles estavam tirando isso de nós.

A entrada na publicidade
Na época, não existia publicidade ou faculdade de comunicação.
Havia faixas na rua escrito: ‘marketing, a profissão do futuro! Venha!‘.
Eu olhava aquilo, e fui tentando entender, porque o que eu estudei foi educação.
Mas a comunicação é educação. Do jeito que eu a vejo, ela é!
Meu primeiro trabalho em publicidade aconteceu porque precisavam de uma educadora.
Fui chamada como freelancer para criar um projeto com chicletes Adams: o cliente queria algo sério, então contrataram uma pedagoga.
Criei um quebra cabeça na lua: o homem tinha acabado de chegar na lua e contava toda a história no verso da caixinha.
Disseram que eu teria que apresentar ao cliente. Na agência, falaram: ‘Você não pode ir assim’.
Eu tinha uma escola de arte, andava de jeans, sentava no chão, com cara pintada.
Fui a uma loja, comprei roupas, voltei. Disseram: ‘Nádia, não mudou nada!’.
Respondi: ‘Claro que não vai mudar. Sou eu! Eu sou isso.‘
(Eu havia comprado outra calça jeans, só que colorida, e uma blusa de crochê roxinha).
O trabalho foi um sucesso absoluto, e as pessoas perguntavam: ‘De que anuário você copiou?‘
Eu respondia: ‘O que é anuário?‘ (Risos)
Saí deste projeto com uma proposta de trabalho em que eu ganhava três vezes o que eu ganhava dando aula.
Aceitei, pensando: ‘fico aí até o final do ano e vejo o que acontece‘.
E é o grande sucesso da minha vida.

Eu acho que o que me levava adiante era sempre muita curiosidade, de entender como é que as coisas funcionavam.
Via as mulheres sofrendo muito.
Achava insuportável só ver homens, e passei a minha vida inteira só com homens.
Fui diretora de multinacionais, e tinha vezes em que sentava na mesa e tinha eu e 18 homens.
Tinha momentos em que para que eu conseguisse falar, tinha que dar soco na mesa, sim.
Não tinha outra alternativa.
O sucesso e a fidelidade à própria verdade
Aí você pergunta assim: “você sonhou alguma vez em ser isso, você lutou por isso?”
Não, nunca me passou pela cabeça.
Um dia eu vi, eu era.
O curioso da minha história é que, ao mesmo tempo, as empresas e as ONGs acreditavam em mim.
Sempre foi assim.
Trabalhei com banco sendo comunista e trabalhando por causas sociais.
Trabalhava com publicidade porque eu tinha que pagar as contas e cuidar da minha família.
Shampoo Johnson, por exemplo, eu comprei em uma briga internacional!
Era uma marca da Inglaterra e partia do princípio de que as mulheres tinham que ser todas loiras, cabelo liso.
Aí começou uma briga.
Argumentei que nossa realidade no Brasil não era de mulheres loiras, que isso era um absurdo.
Mandaram um consultor inglês acompanhar o nosso trabalho de pesquisa.
Tinha aquela coisa colonialista de que eles sabem tudo, e você só tem que obedecer.
Não fale isso pra mim que você comprou uma inimiga.
Eu sou péssima pra obedecer!
No fim das contas, alteramos a campanha e ainda recebi um papel dele dizendo assim: “agora escreva quais são os guidelines (as diretrizes) para toda a América Latina”.
Falei: “vocês não entenderam nada.”
Depois disso eu não podia nem lavar a cabeça mais, de tão cansada que eu estava de xampu. (Risos).

Em determinado momento, entrei na faculdade, coisa que era impensável na minha família!
A influência do meu grande amigo Vlado, e da política, foi muito grande: fiz sociologia.
E, assim que acabei a faculdade, fui pro Rio de Janeiro com a minha primeira filha.
Já fui imaginando que eu ia me separar do meu marido.
Queria me dar essa chance. Namorei com ele desde os 12 anos de idade, então eu vivi dentro da família dele, o que foi muito importante porque trouxe toda uma cultura que a minha casa não tinha.
Com 25 anos, nesta época, eu já era top em publicidade e marketing em São Paulo.
Não me perguntem como, mas era. Fiz coisas que marcaram época.
Acho que o que me ajudou é que eu nunca tive nenhum conceito de superioridade para os homens.
Vou te dar um exemplo.
Era aniversário da minha filha no Rio de Janeiro e eu estava trabalhando que nem doida. (como se trabalhava, meu Deus!).
A festa toda estava pronta quando eu peço para os homens comprarem os refrigerantes (meu marido, meu chefe e meu pai).
Saíram. Demoraram pra caralho, e voltaram sem os refrigerantes.
Claro que a esta altura eu já tinha me virado, e quando chegaram, o Roberto falou:
‘hoje vocês vão conhecer a Nádia. Porque aqui estão os três homens que podem ter alguma autoridade sobre ela e os três vão levar a esporro no mesmo nível.’
E era verdade.
Eu não planejava ter essa rebeldia, só era assim que eu me sentia.
Eu devo ter sido homem em outra encarnação, porque não tinha essa comigo.
E dentro das agências era a mesma coisa, porque os homens podiam ser horríveis!
A pior coisa era o assédio.
Eu era muito bonitinha e não sabia lidar com isso.
Soltavam bombinhas de São João atrás de mim no corredor! Era a época da mini saia, e eles faziam tudo para que a gente levantasse as pernas.
Mas quando chegava na hora do trabalho MESMO, eles se fodiam, porque eu não aceitava essas brincadeirinhas numa sala de reunião.
Uma vez ajudei a conquistar uma conta gigante e eles tentaram puxar o meu tapete.
Quando descobri, pedi demissão. As pessoas ficaram chocadas com isso, porque eu tinha um bebê para criar sozinha!
Mas, uma semana depois que eu saí já tinha sete propostas de trabalho!
Eu tinha tanta confiança! Eu tinha tanta certeza que eu sabia fazer aquela merda!

Ação da Cidadania Contra Fome: a campanha que entrou para a história
Quando fui trabalhar com o Betinho [na icônica ‘Ação da Cidadania contra a Fome’, que mobilizou artistas e publicitários de todo o Brasil para denunciar a fome no Brasil] fui com o coração aberto de quem queria ajudar a acabar com a fome neste país.
Este convite do Betinho foi para uma coisa que eu acreditava muito e que acredito até hoje.
Não tem uma prova de que isso é verdade, mas enquanto eu estiver viva eu estou lutando por isso, que é a de que a comunicação é capaz de transformar o mundo!
Seja no jornalismo, seja na arte, seja onde for!
Por isso que eu amo o David Bohm, que é o cara que diz que a conexão, a sociedade se dá através da comunicação.
Então, desde 1992, a minha briga com as ONGs é a de dizer: ‘vocês precisam de comunicação! Não podem ter preconceito porque o marketing é uma ferramenta, não tem ideologia!‘
O que eu sinto é que existe um motivo para você fazer comunicação.
E esse motivo você pode descobrir.
E a partir do momento que você descobrir, você pode revelar.
Muitas vezes é um longo caminho, mas quem quer transformar, seja lá o que for, tem que aprender a fazer comunicação. E sem visão de diagnóstico e visão estratégica, não tem solução.
Em determinado momento, o Betinho me disse: ‘coordena! [a ação contra a fome]’.
Eu disse: ‘Coordena? Eu vou botar esses publicitários todos para trabalhar contra a fome! E além disso, vão ter que estudar essa capacidade que a comunicação tem de transformar.‘
Comunicação não é informação. É falar com o coração.

Foram anos fazendo este trabalho.
Depois, coordenei 40 ONGs na primeira campanha contra o racismo voltada para o confronto do branco.
‘Onde você guarda o seu racismo?‘ era uma pergunta para o branco encarar o seu próprio racismo velado!
Quando o Instituto Alana chegou para nós, falamos sobre o papel da comunicação.
O Alana construiu materiais lindíssimos, como o filme “O Começo da Vida”, que inclusive, é sobre o que fala a tese da minha filha: se você conseguir ser muito, muito, muito competente ali na hora que o bebê nasce, você pode transformar o mundo.
Só que você já entra nessa já roubada, né?
Porque te contam que você vai ser aquela mamãe margarida, que o bebê não chora, que não pode ficar cansada, aquelas merdas que enfiam na cabeça das pobres mulheres que ficam achando que ser mãe é um paraíso.
E aí descobre que não é, e não tem nem pra quem contar.
Enfiaram muita coisa na cabeça da mulher. A gente tá errada sempre, né? É uma coisa verdadeiramente alucinante.
Agora, o pior é que isso continua. Continua, continua…
E aí chega na minha idade, chega a velhice… e chega o que contam pra gente da velhice.
Eu descobri o etarismo a partir do momento que eu deixei o cabelo ficar branco e descobri que eu fiquei velha pras pessoas!
Elas não tinham se dado conta que eu já era velha!
Mas o cabelo ficou branco? Porra, agora você tá fodida, né? Não tem mais trabalho pra você, não. Não tem mais gracinha com você.

No trabalho, sempre fui muito briguenta, coisa que eu não sou na vida pessoal.
Nessa área, sou uma formiguinha, carente, cheia de coisas. No trabalho, não.
Nunca entendi muito bem porque era tão diferente, mas é assim.
Tive um marido que falava: “Nádia, seu nome é trabalho”.
Sou sagitariana com ascendente Virgem, e lua em Sagitário também. Eu agradeço o Virgem, porque, pra mim é essencial, me mantém na Terra.
O Sagitário voa, vai embora, não sabe nem pra onde vai. Aí o Virgem vai lá e tem essa coisa de abrir os caminhos.
Quando eu resolvi que eu não queria mais trabalhar com publicidade, começaram a cair livros na minha mão. Foi a fase da física quântica.
Foi quando eu decidi que eu ia ouvir as pessoas.
Criei uma metodologia de diálogo.
Falava com as pessoas, e criava com elas desde o início, desde a embalagem.
Isso me levou para fazer dentro da empresa, e foi aí eu descobri a dor de trabalhar.
Escutei de tudo.
Escutei pessoas que não declaram que tiveram um acidente de trabalho e ficaram prejudicadas a vida toda por isso.
E foi aí que comecei um trabalho de comunicação dentro das organizações.
Eu vim para Juiz de Fora porque eu tive câncer.
O processo do câncer é muito difícil.
Esses últimos tempos foram de tristeza, sabe?
Quando o Bolsonaro virou presidente, senti que ele estava tirando a vez de eu viver meus últimos anos na terra, além de já terem me tirado a juventude… no final da vida, é sacanagem, né?
Fiquei muito afetada emocionalmente em viver tudo isso de novo, esperando a mudança chegar.
Afetou a minha criatividade e no meio disso, eu fiquei doente. Então, eu acho que de dois anos pra cá eu estou renascendo.
Tenho vontade de treinar gente.
Fico triste de que tudo que eu aprendi vai ficar sem registro, porque não dá tempo de escrever (e tem coisa que nem posso porque é segredo de empresa: falei com mais de 15 mil empresários pelo Brasil).

Hoje, eu sou uma pessoa que medito, adoro o silêncio. Acho que a fé e a espiritualidade estão na natureza.
Minha relação profunda é com a planta que eu vejo crescer. É com o mar, com o rio, com as forças da natureza.
Então, aí, para mim, está o caminho.
Não consegui ainda ter medo de morrer. Penso muito nisso. Até porque pensei a vida inteira por causa da Nádia que morreu.
Mas a sensação de sofrer para morrer, é uma ideia que não faz muito sentido.
Você me perguntou como manter o brilho nos olhos… sinceramente, eu não tenho a menor ideia.
Mas nunca me esqueci de quando, aos 18 anos, conheci uma velhinha linda, de cabelo branco, chamada Dona Cecília.
Ela havia criado um método diferente de alfabetização — e foi a primeira vez que compreendi o que era uma visão sistêmica: entender a coisa como um todo, e não em partes.
Quando o curso terminou, fui dar um abraço nela e falei: “Muito obrigada, você não sabe como me ajudou.”
Ela olhou bem dentro dos meus olhos e disse: “O mundo ainda vai ouvir muito falar de você, porque você tem brilho no olho.”
Fui embora pra casa pensando só nisso: Dona Cecília disse que eu tenho brilho.
Ao longo da vida, em momentos em que realizei coisas que nem tinha sonhado, essa lembrança voltava:
‘Não se esqueça que você tem brilho no olho’.
E eu não me esqueci.
*Depoimento concedido à jornalista Anna Leão.
