(O salto que o meu processo de autoconhecimento deu depois dessa experiência não foi brincadeira)
O ato de criar bonecas de pano feitas à mão é um produto do nosso inconsciente coletivo, de uma prática feminina. Isso significa que em diferentes lugares do mundo, que nunca tiveram contato um com o outro, mulheres sempre criaram bonecas de pano para suas filhas e netas.
Japão, África, América… por onde você for, esta tradição estará presente, com nomes diferentes. Na América Latina, dá-se o nome de Mamachas.
Com o objetivo de nos conectarmos com esta tradição do inconsciente coletivo, a psicóloga Junguiana, Adriana Sleutjes, idealizou a oficina Florescer: Oficina das Mamachas.
Segundo Adriana, fazer bonecas de pano hoje, é fazer
“uma comunicação direta com o nosso inconsciente. Toda vez que você faz algo que é ritualizado, está fazendo contato com seu self.”
Além da perspectiva do artesanato, existe a tradição de colocar intenções e propósitos nas bonecas, que adquirem uma perspectiva “mágica”.
No livro “Mulheres que correm com os lobos”, a autora nos conta a história de Vasalisa, que é uma boneca de pano, que representa a intuição, este poder invisível que nos conecta com a gente e que nos direciona a tomar os melhores caminhos.
Eu participei da oficina com a minha mãe e vou contar como foi minha experiência:

Minha Experiência
Como se tratava de uma prática para trabalhar a nossa ancestralidade feminina, convidei minha mãe, Luiza, para participar da oficina comigo.
Como ela é muito católica, fiquei surpresa e animada que ela topou meu convite. Ter ela comigo neste mergulho ancestral era uma oportunidade de ouro para meu processo de autoconhecimento.
A minha experiência com ancestralidade começou assim que chegamos no local combinado para encontrar nossas caronas.
Me apresentei para uma das mulheres, e quando disse meu nome (Anna) ela contou que, na sua opinião Anna era seu nome seu favorito, e que gosta desse jeito, com dois “enes”.
Eu contei que meu nome é uma homenagem às minhas avós, ambas se chamam Ana, e que demorei a gostar do meu nome, por relacionar muito a “nome de vó” quando eu era criança.
Pronto, já cheguei arrancando o band-aid e começando a olhar para minhas avós e suas forças impressas em meu nome, e meus sentimentos confusos em relação a isso.
A dinâmica de um ambiente só com mulheres já começou no caminho. Nos dividimos em caronas, uma ajudou a outra e juntas chegamos mais rápido.
Fomos até o local da oficina no espaço Villa Ser, um lugar lindo no meio do mato, com músicas selecionadas a dedo pela equipe, uma mesa decorada com contas, tecidos, sementes, flores, aromas de incenso e água saborizada.
Um ambiente que exalava o feminino e, consequentemente, magia.
Fomos recebidas por Adriana e sua sócia Simone Ragone com presentes oferecidos em kits individuais para cada mulher.
Estava muito frio (muito MESMO), e a minha amiga que amava Anna com dois “enes”, me emprestou um cachecol, me dando suporte físico para que eu conseguisse viver a experiência.
Assim que nos sentamos, minha mãe, como eu disse, religiosa daquelas tradicionais, disse que não estava se sentindo à vontade para participar da oficina em si, com receio de que a experiência não estivesse alinhada com seus valores católicos.
Ela decidiu que ficaria “só observando” (e me apoiando) e, assim o fez, tendo sua decisão respeitada por toda a equipe.
E, para mim, feminismo também é sobre isso. Sobre a liberdade de decidir dar seu sim, seu não e seu talvez, tendo suas decisões respeitadas, acima de tudo, por você mesma. A liberdade de se posicionar, tendo como referência seu próprio norte.
Quando todas as mulheres terminaram de chegar, Adriana nos conduziu a uma espécie de “auditório na mata”, em que todas nos sentamos em degraus e ela nos contextualizou sobre a confecção das bonecas ao longo da história, o inconsciente coletivo e nos introduziu a um estado meditativo de contato com este inconsciente e nossa intuição.
A partir daí a prática, para mim, entrou em um campo bem espiritual.
Costurando as Mamachas
Fomos provocadas a buscar pela natureza, em silêncio, elementos para preencher nossas bonecas.
Eu fui muito atraída por elementos amarelos, como folhas e flores com este tom.
Demorei-me em uma folha específica, que junto dela, havia uma semente em simbiose, eu achei a coisa mais linda do mundo. Incluí lavanda do jardim, para trazer calma, e outros itens que remeteram à fartura, paz e prosperidade, como arroz, feijão, aveia e camomila para encher minha boneca.
Eis que chegou a hora esperada de começar a confeccionar as bonecas.

Tínhamos que preencher o saquinho com os itens selecionados e costurá-lo, formando o corpo da boneca.
Só que eu sou uma mulher totalmente sem jeito quando o assunto é artesanato e, sem nenhuma experiência com costura.
Então é claro que eu não sabia como costurar a boneca sozinha.
Foi no nível de: costurei do lado contrário e tive que refazer.
Minha mãe, ao meu lado, oscilava entre me ajudar a fazer os pontos e rir da minha costura desajeitada.
Mas, consegui, com a ajuda dela (e a essa altura, eu já estava com o rímel borrado de chorar de rir, gargalhadas que há um tempo não dava com a minha mãe).
Depois do corpo da boneca preenchido e devidamente costurado, fomos fazer os vestidos, aventais, braços e lenços.
A proposta era a seguinte: cada boneca teria 3 peças de cada, 3 lenços, 3 aventais e 3 saias.
A primeira representaria a sua avó, a segunda a sua mãe, e a última representaria você.

Neste processo de construir essas camadas de gerações, conversando com minha mãe, ela me conta algo que em 30 anos nunca me foi mencionado: existem 6 gerações de Annas (meu nome) e Luizas (nome da minha mãe) seguidas na nossa linhagem.
Foram 6 gerações de Luizas e Annas, até chegar em mim (que, aparentemente, encerrei essa “tradição” ao escolher Clarissa para o nome da minha menina).
Saber disso naquele lugar e naquele contexto mexeu muito comigo, pois acessei uma informação sobre minha ancestralidade muito forte, e que nos conectou, eu e minha mãe, a essas outras Annas e Luizas que nos antecedem.
Fiquei pensando em quem sabe quais tipos de desafios essas mulheres precisaram passar, quais tipos de forças elas precisaram acionar e quais curas elas (e nós duas), precisávamos curar e parar de carregar.
E saber disso me deu uma explicação sobre meu incômodo com meu nome: talvez no fundo eu sempre sentisse que era preciso romper com pesos que vem lá de trás, para construir algo novo.
Ainda nessa reflexão, finalizei minha boneca, e fomos convidadas a decorar do nosso jeito.
Ouvia uma mãe rindo ao fundo da filha que colocou um piercing na sua Mamacha, outra procurando algo para ser os brincos, outra querendo decorar o vestido com contas.
Eu coloquei um cachecol dourado na minha, simbolizando toda essa energia do amarelo, da prosperidade, e do amparo do cachecol, que estavam me acompanhando durante toda a experiência.

Consagrando as bonecas
Ao terminarmos nossas bonecas, chegou a parte de consagra-las diante um altar com os 4 elementos.
Adriana explicou que através deste ritual as comunidades antigas acreditavam que dariam “vida” para a boneca.
Ela teve o cuidado de explicar que este ritual não é algo literal (nada de ficar com medo achando que a boneca ganhou vida literalmente).
É um ritual que nos conecta com este inconsciente coletivo, de mulheres que faziam isso em diferentes partes do mundo, mesmo sem ter contato umas com as outras.
O ritual de consagração das bonecas era uma apresentação de cada Mamacha à roda e aos elementos, verbalizando o nome da boneca e sua intenção.

Foi o momento mais emocionante da oficina.
Muitas mulheres se emocionaram ao falarem das suas bonecas e das suas intenções.
Teve boneca com o nome Lua, Intuição, Sabedoria, Afrodite, Enfrentamento, Cleópatra, Luna, nome das avós, teve até mãe e filha que colocaram o mesmo nome de formas diferentes, Sofia e Sabedoria, ambas homenagens à avó, sem saberem.
A minha se chamou Atena, deusa do trabalho, da inteligência e da sabedoria.
Uma homenagem à Atena interna das minhas ancestrais, que são dotadas de atitude e força de materialização.

Em determinado momento, uma mulher, ao consagrar sua boneca, caiu em prantos.
A sua mãe estava ali presente e, imediatamente, Adriana convidou: “vai lá mãe, abraça sua filha”, e esta respondeu: “é essa a minha vontade mesmo!”. A mãe foi lá e abraçou a filha, que chorava em seus braços.
Imediatamente me lembrei da minha filha e da minha mãe, e deste instinto protetor que nos faz ser porto seguro quando mães, e nos faz desejar profundamente este porto seguro quando filhas.
Em seguida, a filha da mulher que tinha acabado de ser acolhida por sua mãe, foi consagrar sua boneca.
Uma menina adolescente, lindíssima, dessas que chamam atenção não apenas pela beleza, mas também pela personalidade visivelmente marcante.
A sua boneca se chamaria Vida, pois, segundo ela, era algo que ela já desejou encerrar, e que hoje, valoriza.
As três, mãe, filha, e neta, juntas, se emocionaram e se abraçaram nessa cura.
Na verdade, todas nós ali presentes nos emocionamos, e ainda hoje, ao escrever sobre este momento, lágrimas escorrem pelo meu rosto.
Adriana colocou as três mulheres enfileiradas, Filha, Mãe e Avó, e as convidou, uma a uma, a se virarem e dizerem: “Obrigada pela vida”.
Este momento foi uma representação da cura coletiva que estávamos experimentando.
Ao olhar para nossas ancestrais com gratidão e libertação, as honramos, podemos agradecer pela vida, e as libertamos.

Nas palavras finais, Adriana mencionou para minha mãe que nos rituais antigos, sempre existiram as mulheres que ficavam na retaguarda.
Mesmo da maneira não tradicional, minha mãe participou de um jeito em que respeitou seus próprios limites e deu o apoio que eu precisava naquele momento, trazendo conhecimentos sobre nossa ancestralidade, que eu não teria acessado se ela não estivesse ali.
Espero conseguir ter este equilíbrio entre minhas necessidades e as da minha filha, como ela teve aquele dia comigo.
Ao finalizar o encontro, com a lua cheia já no ápice no céu, a mãe da Adriana, editora, recitou estas palavras, de sua autoria:
“Dentro de uma mulher, habitam muitas mulheres. O universo feminino é uma porta aberta, uma janela para o mar, um portal para outros mundos. Dançam no tempo Cassandras, Messalinas, Giocondas, Penelopes. Anjos e gárgulas. Mas dança, sobretudo, a suavidade das manhãs. Mãos de orvalho sobre a superfície ríspida da vida. Olhos de avelã, sobre a terra, derramados cristais de contas coloridas a decifrar enigmas, sonhos e realidade. Com passos pequenos sobre os gramados, mulheres-pássaros pisam as rendas da lua. Com audaciosa coragem mulheres-lobos correm à sombra de seus próprios anseios. E, mesmo sem perceber, mulheres, mulheres, mulheres… enchem as ânforas de vinho…”
Sim, mulheres enchem as ânforas de vinho, as bonecas de pano, camomila, arroz, feijão, o útero de vida, e a jornada de magia, materialização e cura.

Ser mulher é uma potência divina, e me conectar com o inconsciente coletivo nesta oficina me fez perceber como esta potência sempre se manifestou nas que vieram antes de mim, através de mim, e nas que vem depois.
É algo NOSSO.
Foi uma experiência profunda de autoconhecimento e recomendo para todas as mulheres que sentem o desejo de trabalhar a ancestralidade e o feminino.
A minha Mamacha vai ficar no meu escritório, me lembrando da força destas mulheres que vieram antes e que, sem elas, eu não estaria aqui.
Em homenagem às minhas ancestrais, às Anas e Luizas, e as outras que vieram antes, digo com muito amor: muito obrigada pela vida.
Texto: Anna Leão (jornalista e diretora Revista Espelho Nosso).