No Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, a literatura remédio de Marilda Simeão
Foi no mesmo dia em que eu completava 33 anos de jornalismo.
Um número cabalístico por si só e, portanto, cercado de aspectos transcendentais que adoro observar no meu dia-a-dia.
Sinto que é uma das formas com as quais o Universo conversa comigo, e decifrar esses códigos me traz uma alegria quase infantil.
Desci do Uber na entrada da casa que abriga o Ilé Ìyá Ominibú Asé Omitogum, dirigido pela Ìyálorisá, Janaina T’Osún, no bairro Poço Rico, em Juiz de Fora, com a emoção de uma jornalista principiante.
Afinal, era a primeira vez que pisava num terreiro de candomblé. Ou melhor, de uma religião de matriz africana. Tarefa que me foi atribuída pelo ofício de assessorar a professora Marilda Simeão, no lançamento de seu primeiro livro, Oogun Ewa – Feijão Remédio, publicado com recursos da Lei Murilo Mendes.

A acolhida carinhosa de uma das frequentadoras da casa a mim e à jornalista Anna Leão que me acompanhava, nos orientando a seguir por uma passagem a qual acessaríamos os fundos do imóvel, foi também marcada por um refrescante copo d’água.
Afinal, já se passavam das 18 horas, mas o sol de quase verão estava com a corda toda. Do banquinho de madeira onde fomos acomodadas, dava para acompanhar o vai-e-vem de Ekedis (mulheres responsáveis por cuidar dos templos, zelar pelos orixás e transmitir os saberes ancestrais africanos) que davam os últimos retoques nos preparativos para receber a autora e seus convidados.

A delicadeza em cada canto
O espaço amplo com mobílias simples, rústicas e delicadas e instrumentos musicais fartamente capturados pela sensibilidade da nossa fotógrafa Flora Elias me trouxe um sentimento de familiaridade.
Tudo estava impecável e, para que o receio de cometer alguma gafe não me incomodasse, tratei de dizer às pessoas que foram se achegando e que eram frequentadoras do terreiro do ineditismo daquela minha experiência.
Tão logo Marilda deu o ar de sua graça, sobretudo por se aventurar num terreno desconhecido para ela como autora de livro, Mãe Janaína, com suas vestes de uma beleza que eu só havia visto pela tevê, tomou seu lugar para conduzir o encontro.

Acomodada em cadeiras brancas, cor que predominava em quase tudo no ambiente, uma plateia atenta ouvia o relato da professora escritora sobre a importância de nós, negras e negros, contarmos nossas próprias histórias ao mundo que se acostumou a relatos enviesados pela lógica dos escravizadores.

O Feijão Remédio, a que ele se refere em seu livro, nada mais é que a história do Feijão de Ogum em Juiz de Fora.
Uma celebração tradicionalíssima de algumas religiões de matriz africana marcada pela partilha do alimento preparado a muitas mãos e com doações recebidas, culminando em uma grande festa da cultura ancestral. Em 2024, o evento chegou a sua 22ª edição em Juiz de Fora.

Marilda não só estava na primeira edição, como foi uma das fundadoras.
Por isso, fez questão de compartilhar histórias de bastidores durante os quase vinte anos em que se dedicou ao evento.
Se lembra e conta com exatidão os percalços de algumas edições, as conversas sofridas e necessárias ouvidas nas madrugadas adentro, quando organizadores e voluntários se revezavam na cozinha, para que, no dia seguinte, os convidados saboreassem a deliciosa feijoada e seus complementos.

Além dos lamentos, as risadas, os causos engraçados e aquele café providencial, para manter os ânimos acesos, eram ingredientes de uma poderosa sessão de cura coletiva que reunia pessoas de diferentes matizes e convicções, mas dispostas a compartilhar.
“As histórias de Marilda são histórias sobre um Feijão de Ogum da diáspora, de um Feijão que celebra um dos primeiros direitos conquistados pela população africana no Brasil: o direito a batucar, a festa, a honrar seus ancestrais”, escreve a historiadora Giovana de Carvalho Castro que assina o prefácio do livro.

“Escrever esse livro me trouxe uma alegria muito grande. Tenho muito a agradecer por toda a proteção que recebo, pela oportunidade de reverenciar os ancestrais através da profissão da minha fé e de contribuir com participação ativa nos movimentos sociais e de luta da população negra em Juiz de Fora. O livro é uma celebração à memória de centenas de pessoas que nos ajudaram a manter acesa a tradição do Feijão de Ogum. Fiz questão de compartilhar essas memórias, para mantê-las vivas e também na esperança de que sirvam de inspiração aos que virão”, sintetiza Marilda.

Mãe Janaína: herdeira de um legado
“Minha família é a terceira geração de umbandistas. O candomblé foi muito novo pra mim”, conta Mãe Janaína a uma jornalista curiosa sobre sua vida.

“Quando fui visitar pela primeira vez, a gente fala que sente uma manifestação, que é o bolar, uma energia. Foi como tudo começou. Tive que fazer santo. Hoje, estamos com 18 anos de iniciados.
Em 2014, ganhei meus direitos de abrir uma casa de santo, dada pelo meu babalorixá que é o mesmo até hoje. Ele é do Rio de Janeiro e tem uma casa em Portugal. Nós somos bisnetas de Mãe Carmen D’Oxoguian (D’Òsógíyán), lá no Axé Gantois. Nosso falecido avô de santo se chama Pai Beto D’Oxoguian, do Axé Ájágúná, no Rio de Janeiro, e meu pai de santo, que é filho do Pai Beto, Pai Marcos D’Yemanjá, que é do Rio, mas mora em Portugal, onde abriu uma casa de santo”.

“Na verdade, a gente nasce com o cargo de mãe de santo e de yalorixá o nosso pai nos dá os direitos, a partir do momento em que a gente faz a obrigação de sete anos. Ele nos senta na cadeira e nos dá um instrumento, o ibaxé, que é um presente onde estão todos os fundamentos que se precisa para fazer um novo iaô, que é o noviço do candomblé”, explica Mãe Janaína, que está igualmente à frente de um centro de umbanda, no bairro Grajaú, onde são realizadas também atividades culturais em parceria com o Grupo Muvuka.
“É necessário a gente colocar um pouco da nossa cultura, da nossa vivência para fora dos terreiros, porque aquilo que não é conhecido as pessoas têm receio”.

“A gente não quer tolerância. Quer respeito.”
Mãe Janaína integra o Comitê Municipal da Diversidade Religiosa e observa que cerca de 36 religiões são praticadas em Juiz de Fora.
Embora reconheça que o diálogo seja a base para a construção de um caminho respeitoso entre culturas diferentes, acredita que há muito ainda a se fazer do ponto de vista da máquina pública que engloba desde espaço nos cemitérios para os rituais específicos (os mulçumanos precisam lavar os corpos, por exemplo), assim como as questões ambientais, envolvendo as religiões de matriz africana.
Ainda que a intolerância religiosa seja considerada crime, os terreiros estão sendo enquadrados na Lei do Silêncio, como agentes de perturbação da ordem.
A casa de Mãe Janaína está respondendo processo judicial a partir da reclamação de um vizinho. “A gente não quer tolerância. Quer respeito”, conta.

Atento e entusiasmado com as discussões provocadas durante o lançamento do livro de Marilda, o presidente da Associação Grupo Afro do Axé Muvuka e regente da Banda Muvuka, Henrique Oliveira Guilhem, mais conhecido como Rick Guilhem, acredita que “falar sobre cultura afro-brasileira e separar a religiosidade é promover o apagamento da cultura preta. Foi o que o colonizador fez. Tudo o que é ligado a matriz afro-brasileira, seja na música, seja na arte, a gente precisa preservar a nossa religiosidade”, diz.
O Muvuka, inclusive, tem um trabalho de salvaguarda das afroameridades, dos saberes dos blocos afro.
“A gente conta muito para as pessoas que vêm para tocar o tambor sobre quem resistiu, trazendo todo esse contexto. É realmente muito importante que a gente se atenha aos nossos registros, à manutenção da cultura preservada”, afirma Rick.
“O samba de roda é um elemento que surgiu dentro do candomblé e foi levado para as ruas. A gente tem, como tudo na nossa trajetória afro-brasileira, pessoas que não entendem, não se aprofundam nesta cultura e monetizam em cima disso sem valorizar as origens”, acrescenta.

Cura coletiva e ancestral
Ekedy de Oya do Rumpame de Bagam, Marilda fez questão de lançar o livro em dois terreiros de candomblé, iniciativa que deixou a estudante de História, musicista e produtora cultural do Bloco Afro Muvuka, Isabela Moreira, encantada.
“O livro da Marilda é um presente enorme para quem estuda história oral, história negra, principalmente, em Juiz de Fora. O prazer de ouvi-la já é uma imersão na nossa ancestralidade. A experiência dela é uma fonte histórica e ter isso registrado, tanto a dela, quanto de outras pessoas que fizeram parte deste movimento. É maravilhoso escutar sobre cura de uma perspectiva ancestral, de uma perspectiva dos orixás, de troca com os mais velhos. É um presente grande, uma joia que este livro representa”.

Após muita conversa, foi a vez do samba de roda, de salgadinhos deliciosos e de uma cerveja pra lá de gelada assumirem o protagonismo do evento.
Quando saí do terreiro de Mãe Janaína, já passava de uma hora da madrugada.
Entre todas as percepções que marcaram também a comemoração dos meus 33 anos de ofício (comecei cobrindo a festa católica de Santa Luzia para a Tribuna de Minas), ficou a certeza de que o Universo realmente é muito amoroso quando quer nos presentear.








Sobre a autora do livro
Marilda Simeão é professora, pedagoga e especialista em História da África. É filiada ao Movimento Negro Unificado, há 33 anos. Integra o grupo Nzinga de contadoras de histórias e contos africanos. Já foi contemplada com as medalhas Roza Cabinda e Nelson Silva.
Sobre a obra
O livro “Oogun Ewa – Feijão Remédio” está à venda nas livrarias:
– Quarup Livraria Antiquaria
Rua Padre Café, 484 – São Mateus
– Livraria Ca D’Ori
Rua Antônio Passarela, 309 – Casa 2
São Mateus.
